Literatura russa em páginas de seda
No sétimo episódio da série “Contornos”, conhecemos a associação que imprimiu a edição especial de “A dama de espadas”

Entre presentes e honrarias, no acervo do Palácio do governo do Rio Grande do Sul está uma peça rara: o exemplar de número 169 da obra “A dama de espadas”, de Alexandre Puschkin, de 1834. Mas o que essa obra tem de tão especial? O romance do dramaturgo russo foi impresso em 102 páginas de seda, em meados dos anos 1940. A obra é assinada pela Confraria dos Bibliófilos Brasileiros Cattleya Alba, com ilustrações de Martha Pawlowna Schidrowitz e com tradução de Alvaro Moreyra.
Carregando o nome de uma orquídea brasileira rara, a Confraria Cattleya Alba produzia edições singulares, com tratamento editorial artístico, compostas por detalhes que as enquadram em um espectro de raridade. Os poucos exemplares feitos eram destinados aos sócios da Confraria. Alguns outros eram enviados como presentes a instituições brasileiras. Foi assim que o exemplar 169 do romance russo chegou ao Palácio Piratini. Produzidos com esmero e requinte únicos, os livros da Cattleya Alba guardavam um espaço em suas páginas iniciais para que os sócios assinassem, tornando-os ainda mais exclusivos.
“A dama de espadas” é uma tradução da obra “Pikowaja dama” e conta a história do oficial Hermann, um engenheiro alemão e fanático jogador de cartas, que busca descobrir o segredo das vitórias da condessa Ana Fédotovna. O romance de Puschkin, considerado o pai da literatura russa moderna, critica a aristocracia e o vício com jogos de carta na sociedade russa do século XIX. As 52 ilustrações que se intercalam com a história no passar das páginas conversam com o enredo. Martha Schidrowitz inspirou-se em cartas de baralho para ilustrar os principais personagens da narrativa.
Logo na capa, Ana Fédotovna nos é apresentada. A ilustração é acompanhada da inscrição “Vênus Moscovita”, apelido dado à condessa em sua juventude. Ela segura o cetro de espadas em suas mão direita, e, na esquerda, as três famosas e afortunadas cartas que garantem a sua vitória no jogo. Os traços delicados e planejados das ilustrações revelam os esforços para criar exemplares únicos e raros, dignos de coleção para os amantes de livros preciosos e diferenciados, conhecidos como bibliófilos.
Com poucas informações disponíveis sobre a Confraria Cattleya Alba, fomos atrás do doutor em ciência da informação e professor da Universidade Federal do Pará Rubens Ferreira. Ele escreveu um artigo sobre o exemplar em seda de “A dama de espadas” encontrado no acervo de Raymundo Ottoni de Castro Maya, um dos membros da Cattleya e fundador de outra Confraria, a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil. Para realizar a pesquisa, Rubens teve em mãos a peça de número 102, assinada pelo sócio, e que está no acervo de obras raras do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro. Ainda que estejam separados por mais de 1500 quilômetros e tenham chegado aos seus destinos de formas diferentes, ambos exemplares foram produzidos pela mesma Confraria e são peças raras, tanto para o museu carioca, quanto para a sede do executivo gaúcho. O doutor em ciência da informação destaca, ainda, a impressão em seda como uma garantia de diferenciação do produto, além de uma possível inspiração no traço cultural chinês de impressão em seda.
O trabalho da Cattleya começava ainda na escolha dos títulos, com a seleção de clássicos, tanto brasileiros como internacionais. Além do romance de Puschkin, a Confraria imprimiu edições especiais de “Lendas brasileiras”, de Câmara Cascudo; “Lisístrata”, de Aristófanes; e “Conto de inverno”, de William Shakespeare. No ano de 1944, a diretoria de impressão de livros contava com onze membros, dentre eles, apenas uma mulher, M. Ramos de Franco. Entre os diretores também estavam Alvaro Moreyra, Aníbal Machado, Augusto Mayer, Câmara Cascudo, Manoel de Abreu, Manoelito de Ornellas, Nilo Ruschel, Ricardo Xavier da Silveira, Leo Gerônimo Schidrowitz e Rodrigo Octavio Filho.
O edifício de número 5 da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, guardava a sede da Confraria que alimentava as coleções dos bibliófilos brasileiros. “São pessoas, como o próprio nome diz, que tem um amor, e esse amor vai se traduzir no desejo de colecionar”, pontua Rubens. Para além de colecionar, os sócios e as instituições presenteadas preservam a história e uma cultura única em relação à literatura. A Confraria dos Bibliófilos Brasileiros Cattleya Alba já não existe mais, mas outras seguem produzindo raridades, como a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, fundada em 1995 em Brasília.
Rubens realça o cuidado dos colecionadores com cada exemplar, o que, por vezes, é superior à própria preservação dos museus e das bibliotecas onde são conservados. “Quando eles morrem, a família não entende o significado dessa coleção. Quer ver a casa com mais espaço e acaba vendendo essas coleções para universidades e museus por preços muito baixos. Esse é o medo muito grande que os bibliófilos têm: o que será da coleção de toda a sua vida.” O professor reforça também a necessidade de zelar pela preservação e segurança dessas obras: “é importantíssimo a gente discutir a segurança das coleções das instituições, eu acho que a gente ainda não pensa muito nisso, a gente tem uma fragilidade muito grande, e por esse valor histórico, artístico e cultural precisa-se pensar na segurança dessas coleções.”
Texto: Ana Julia Zanotto
Referência:
FERREIRA, Rubens da Silva; BATISTA, Denise Maria da Silva. A dama de espadas: a “orquídea” bibliográfica do acervo de Raymundo Castro Maya (1894-1968). Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 152-166, jan. 2018. ISSN 1980-6949. Disponível em: <https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/634>. Acesso em: 18 out. 2022.