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Memórias telefônicas

A homenageada da série personagens é Dona Joana, telefonista do Piratini

Joana em sua principal função: ouvir
Joana em sua principal função: ouvir - Foto: Alvaro Bonadiman

“Eu nunca imaginei trabalhar no Palácio”. Essa é a primeira frase que Maria Joana dos Santos Dornelles, de 70 anos, diz ao relatar sua vida. No Palácio há 32 anos, está há 30 na mesma função: telefonista. Mas essa é apenas uma das diversas profissões que ela já teve. Com barulhos de telefone ao fundo, Dona Joana, como é conhecida, contou sua história na sala que chama de sua há três décadas.

Joana nasceu em Santiago, cidade do centro oeste do Estado, entre Santa Maria e Alegrete. Mais velha de 10 irmãos, ainda criança, sua mãe lhe deu para uma família de criação, prática comum nos séculos XIX e XX no Brasil, em que famílias de classes economicamente inferiores doaram seus filhos para serem criados por famílias abastadas. Em sua história, a telefonista passou por duas dessas famílias. “Nunca perguntei para minha mãe porque ela me deu, nunca soube”, contou.

Eu nunca imaginei trabalhar no Palácio.

Na primeira família, ela fugiu. Na casa desta família, ela era obrigada a limpar, cuidar da casa e, ainda, sofria violência. “Nunca soube o que era comer um pão até ter 10 anos”, revelou Joana. Um dia, após apanhar muito, apavorou-se e fugiu para a casa da tia. Em sua casa biológica, outro fator, seu pai era alcoólatra e violento com a mãe. “Fui uma pessoa muito sofrida”, afirma. Apesar de na sua primeira infância ter essas memórias tristes, Joana não se ressente e tem um mantra -- desde aquela época -- “amanhã vai ser melhor”.

E sua segunda família foi, e Joana lembra com muito carinho dela. Ainda trabalhou na casa, mas teve oportunidade de estudar -- e ela admite que não aproveitou como deveria -- e, acompanhando sua nova família, mudou-se para Porto Alegre, local em que fez sua vida. Morou com a família por muitos anos e, nas férias, voltava para Santiago para visitar sua mãe, pai e irmãos. Joana lembra que nessas visitas ajudava seus pais a catar objetos no lixão. “Eu que já juntei lixo, hoje trabalho no Palácio”, reflete.

 Na cidade, atuou em diversas áreas, com diferentes empregos, até chegar ao Piratini. Foi babá, vendedora, garçonete e empregada doméstica. Chegou ao Piratini para ser secretária, função que exerceu por dois anos. Ao abrir uma vaga na telefonia, foi para sua sala, que hoje é sua segunda casa.

Na área dos telefones, os turnos se dividem em dois, seis horas pela manhã e seis horas pela tarde. Joana cobre o turno matinal e sua rotina, de sua casa ao Piratini é metódica. Acorda cedo, arruma a cama, e afirma que quem não arruma é "bicho", o que já demonstra sua organização - sua casa está sempre arrumada, conta, com banheiro limpo e sem louça na pia. Chega ao Piratini e passa das XX às XX atendendo telefones. Ela resume seu trabalho em uma frase: "sou paga para ouvir". E Joana já foi reconhecida por seu trabalho de ouvir, com medalhas, honrarias e presentes – um dos presentes foi uma cuia, da qual a telefonista lembrou em diferentes momentos durante a entrevista. A última medalha recebida foi neste ano, a “Medalha Governador Ernesto Dornelles”, por serviços prestados ao Estado.

Sou paga para ouvir

Joana afirma que gosta de todos os seus colegas de trabalho e sempre traz carinhos para eles, geralmente em forma de comida. "Como já passei fome, acho que as pessoas merecem um agrado", afirma.

Joana contou que muitas pessoas já tentaram convencê-la a escrever um livro com suas memórias. Dentre elas, a convivência com a avô, que foi escrava. Este texto é apenas um perfil, mas se pode perceber que a história de Maria Joana dos Santos Dornelles daria, sim, um livro.

Texto: Stéfani Fontanive

Palácio Piratini